Sem Titulo
Ela é forte.
O ambiente é pesado. A não ser o barulho das máquinas a avisar as enfermeiras para a mudança das garrafas de veneno, todos permanecem em silêncio.
Têm todos uma cor de pele horrível, baça, amarelada. Têm uma expressão vaga, vazia, triste… conformada.
Eles não são fortes. Eles vomitam, eles defecam, eles queixam-se.
O tratamento inclui a introdução de cerca de litro e meio de liquido por via intravenosa. Essa quantidade origina que as deslocações às casas de banho sejam frequentes. Levantam-se com dificuldade, seguram-se ao poste de metal com rodas que suporta os líquidos. Caminham pelo corredor de forma calma. Tudo em silêncio, apenas o tilintar do metal.
Ela é forte.
Ela sorri. Não é como os outros. Ela fica cansada. Ela dorme.
Observo a decoração. Um aquário de peixes no centro da sala. Vazio, sem agua, sem peixes, mas com pedras e decoração.
Alguns bordados a ponto cruz, expostos nas paredes, em telas simples, com mensagens bíblicas, de esperança, de salvação. Leio-as todas e não encontro qualquer reconforto. E é tudo em termos de decoração.
Mas as maquinas continuam a apitar, agora a maioria da sala ao mesmo tempo.
Muda-se-lhe o frasco, ela acorda. Tem fome. Rói lentamente uma pêra que uma enfermeira lhe deu, queixa-se que está cansada demais para comer. Em segundos, as suas feições mudam, custa respirar, fica totalmente vermelha, em aflição, agarra-se ao peito com dores, não consegue respirar.
A enfermeira chega apressada, rápida, experiente, confiante, reduz a cadência de introdução do líquido, insere outro veneno para reduzir a reacção nociva do primeiro.
Ela é forte.
Acalma-se, recupera as cores e dorme novamente.
É nesta fase que me chegam as perguntas à parte emocional do cérebro:
“Será que isto não faz pior do que bem?!?” e “Será que sabem o que estão a fazer?”
Logo seguidas de respostas que chegam da parte racional do cérebro:
“É mesmo assim. Não há outra forma mais eficaz de acabar com o ‘mal’. Ela vai ficar bem.”
Ela é forte, ela não vai ficar como os outros. Ou será que vai?...
1 comentário:
Pois não... não estamos de acordo. Ou melhor, estamos de acordo só numa coisa: Ela é forte!
Ontem vivi esta mesma experiência e Ela comentou-me que tu tinhas aqui uma descrição perfeita. Está perfeita. Adoro como a escreves mas as minhas sensações não têm nada a ver.
Eu cheguei a um ambiente de calma mas não de tristeza. Todos são iguais ali, o que ajuda muito a relativizar. Ninguém olha para o teu lenço na cabeça... nem para o teu cabelo comprido. Há coisas mais importantes!
As enfermeiras "apenas" supervisionam. Sorridentes, até parece que têm um trabalho fácil. Fácil é o meu, dei comigo a pensar.
O veneno não é um veneno. É magia líquida! É dele que depende o fim disto tudo. Até as veias colaboram.
Ela dorme sim mas, com uma cara de paz que me tranquiliza.
O aquário (ainda) sem peixes é do melhor. Grande detalhe! Eu deixaria-o sempre assim.
Não digo isto para que pareça fácil.
Ela mostra a força não no tratamento mas na forma como acorda às 6h30m com um sorriso e se põe guapa "só" para ir para ali. Na forma como obedece ao corpo e dá como perdido um dia por semana. Mas só um. Na forma exemplar como lida com esta lotaria. Os maiores "tomates" que eu conheço são mesmo os da minha melhor amiga.
Ela vai ficar bem. Ela vai ficar melhor. Seguro!!!
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